sábado, 17 de outubro de 2015

Palimpsesto

crônica: Palimpsesto
livro: A última trincheira da cidadania
por Eliana
O pai percorreu todos os cômodos da casa à procura da filha. Tinha ouvido seus gritos do conforto do sofá e foi com um suspiro que deixou o copo de cerveja sobre o tampo da mesinha de centro.  Desligou a televisão para ouvir melhor o choro da menina. Andou pelos quartos, olhou dentro dos armários da cozinha, foi encontrá-la embaixo do tanque, na lavanderia. Ela agora chorava baixinho. Ao se abaixar, o homem sentiu estalar os ossos. Decididamente, ele tinha que voltar a se exercitar, quem sabe umas caminhadas. Pôs na voz toda a paciência de que foi capaz.
 - Já passou, já passou.
A menina continuou a fungar, as lágrimas escorriam pelas bochechas avermelhadas.  Pena ele não saber falar a linguagem das crianças. A mãe é que tinha um jeitinho todo especial com ela. Fez outra tentativa:
- Vem, filha, vem com o pai.
O homem estendeu a mão branca e gorda. A menina olhou-a entre lágrimas, indecisa.
- Vem, meu bebê, tem sorvete de chocolate na geladeira.
A menina limpou o nariz com as costas da mão direita, em seguida, pegou a mão do pai. Ele teve ímpetos de recolher a sua, mas aguentou firme.
- O Paulinho escreveu no meu desenho.
- Foi, meu bem ?
Paulinho, o irmão do meio da menina, era o orgulho do pai, já que o mais velho não prestara pra nada, o desajustado. Não comia carne, não votava, jogara todos os documentos fora “pra o governo não me rastrear”. Vivia numa comunidade de desajustados, que a mãe insistia em diz que eram alternativos. Já o Paulinho desde cedo mostrara a que viera. Desde pequeno, dedicado aos livros e aos estudos. Jogava basquete, nadava, tocava violão, cursava o quarto ano de engenharia elétrica numa respeitada instituição pública. Sorridente, sempre de bem com a vida. A mãe vivia imersa num misto de preocupação e de ciúme, porque ele vivia rodeado de meninas.
- O Paulinho escreveu no seu desenho, foi meu bem?
- Foi, pai.
Aquela coisinha ali, com não mais que três anos, que ele nem esperava e que veio acompanhada de certa apreensão. Ter de começar tudo de novo, só que agora uma menina. Ele e a esposa, já não mais tão jovens, a piada da família. Cesariana, fraldas, vacinas, comer na mesa, as primeiras palavras – quais foram mesmo? Ensinar a usar o peniquinho, depois a privada, o primeiro dia na escolinha, as primeiras rebeldias...
- Deixa ver, amorzinho.
Ela segurava contra o peito uma folha toda enrugada. Ele puxou devagarinho, com cuidado para não rasgar.
- Que lindo! - o pai disse, tentando divisar nos traços o que era obra da menina, o que era mancada do garoto. Viu o que parecia um prédio, com vários andares e cores, uma mesa com vaso e flores, uma mulher sorridente – a mãe – um gato, mais vasos de flores, uma árvore. Por sobre o desenho um traço azul forte de esferográfica: um telefone, o nome de uma garota e um mapa, desses que a gente faz às pressas, quando precisa ir a um lugar a que nunca foi antes.
- Puxa, que chato!
Os traços da menina mudaram de imediato. A fragilidade e a inocência, vincadas das lágrimas, deu lugar a uma outra menina de olhos muito abertos e vivos. Ela cruzou os braços e o encarou com raiva. Ele teve medo.
- Você não vai fazer nada?
- Vou sim, você vai ver a bronca que ele vai levar. 
- Vai por ele de castigo?
- Claro, claro – o pai afirmou, sem saber como faria isso se o rapaz já nos seus 23 anos - agora vem, dá um abraço no pai.
A menina, meio que a contragosto aceitou o colo do pai. Os dois seguiram para a cozinha. O homem abria a porta da geladeira quando ouviu gritos no andar de cima:
- Pestinha! Pestinha!
Era o Paulinho, berrando no quarto.
O pai olhou ao redor. Cadê a menina?
O pai subiu as escadas em tempo recorde. Da porta, escandalizou-se com a cena: o filho ajoelhado no quarto, desconsolado. O chão coberto com seus gibis raros. Uns riscados, outros rasgados. A menina sentada em meio às folhas.
O pai pegou a menina do chão, pegou também um dos gibis. As páginas estavam cobertas das letras do nome dela, escritos com giz de cera.  Assustado, pai procurou os olhos da filha.
Ela sorria.  



sexta-feira, 16 de outubro de 2015

crônica: Militância secreta


livro: A última trincheira da cidadania
por: Eliana C S Cruz

Cambada de hipócritas! Caem feito urubus em cima da gente! Agora vou ter que ficar no acostamento, esperando minha vez de ser interrogado por esses brutamontes! Devem estar à procura de bandidos, de assaltantes de banco. Por que não vão baixar lá no covil que é a Câmara e na pocilga Legislativa? É lá que estão os verdadeiros ladrões! Será que não sabem disso? Claro que o governador sabe, deve estar é de rabo preso! Mas não, tem de nos importunar, fingir que é competente! Agora me vem com essa tal de Blitz, atravancando ainda mais o trânsito caótico desta maldita cidade! Quantos na minha frente, dois, quatro, seis? Pelo jeito, vou perder o jantar! Maíra deve estar na cozinha preparando a salada. Os meninos devem estar jogando videogame no quarto deles. Ah, o que eu não daria por um banho, trocar de roupa, tomar uma cervejinha gelada!
- Os documentos, senhor.
A voz do policial arrancou-o dos seus devaneios.
- Pois não, seu guarda.
- Os documentos seus e do carro, por gentileza.
Insolente esse aí, economizando no senhor!
Tirou da carteira os documentos solicitados.
- Estão aqui.
Aguardou ansioso.
- Algum problema, seu guarda?
O outro não teve pressa em responder. Examinou os papéis, o carro, o rosto do homem. Por fim, devolveu os pertences ao motorista.
- Os pneus foram trocados há pouco.
- Estou vendo.
- Estão calibrados.
- Ótimo.
- O IPVA está em dia.
- Positivo.
- O seguro obrigatório também.
- OK.
- Só não fiz o Controlar porque está suspenso.
O policial o encarou com impaciência:
- É só rotina de véspera de feriado.
- Feriado?
- Ocorrem muitos acidentes nesta época do ano.
- Imagino a dor das famílias enlutadas. Quer que eu faça o teste do bafômetro?
- Não é necessário. O senhor pode seguir.
- Tem certeza?
- Tenho sim, senhor. Boa-noite e dirija com cuidado.
- Boa-noite, seu guarda e bom trabalho!
O policial se afastou, fazendo sinal para que  outro carro se aproximasse.
Essa é boa! Que culpa tenho eu se o número de mortos no trânsito só faz aumentar a cada ano? Que culpa tenho eu se os motoqueiros praticamente se jogam embaixo dos carros? Ficam publicando no jornal aqueles quadros horrendos, cobertos de RGs de gente morta! Acham mesmo que nos parar nas ruas e pedir nossos documentos vai adiantar alguma coisa? Por que não proíbem o Carnaval, esse feriado do demônio, em que ninguém trabalha? Eu sei o porquê!  Pra pegarem o dinheiro dos gringos e se esbaldarem com a mulherada! Por que não duplicam os trechos sinuosos das serras? Por que a Polícia Federal não vai fiscalizar os caminhoneiros, aqueles pobres coitados exaustos e sonolentos? Por que não fiscalizam as autoescolas, essas assassinas que distribuem habilitação a preço de banana pra garotos mal saídos das fraldas? Por que não tomam providências com a Regis Bittencourt, que mata mais que a seca de Graciliano Ramos? Por que não aumentam os impostos sobre as bebidas? Bem que podiam tabelar os preços delas ou restringir sua venda, como fazem com as armas. Mas que tolo que sou, esqueço-me de que a maioria dos nossos digníssimos políticos são empresários! E aquele safado então! Teve a coragem de aparecer na televisão pra dizer que...


Cordeiro, crônica

crônica: Cordeiro
livro: A última trincheira da cidadania
por Eliana C S Cruz

- Dona Vera, olha aí, ó. O seu marido endoidou de vez.
A empregada apontava para o homem agachado no meio da sala em meio a várias barras de alumínio de diversos tamanhos.
- Me ocupou a sala o dia inteiro, nem deu pra tirar o pó dos móveis.
- Tudo bem, Neusinha.
- E deu um trabalho danado pra entregar. Os homens saíram cuspindo fogo.
- Por quê?
- Esses ferros, dona Vera, comprido demais.
- Compridos.
- O quê?
- Nada, não, continua Neusinha, continua.
- Então, dona Vera, essas barras de ferro não caberam no elevador, eles tiveram que vir pela escada.
- Coube...
- Sinhora?
- Deixa pra lá.
A mulher deu um suspiro longo, longo.
- Dei dez reais de gorjeta pra eles. Depois a senhora me ressarci, ok?
- Ok, Neusinha, obrigada.
-Tchau, dona Vera.
E apontando para o homem, debruçada sobre as barras de alumínio, disse:
- Boa sorte.
As duas saltaram sobre os retalhos de papelão espalhados pelo pequeno hall de entrada do apartamento.
- Como está o meu príncipe?- a mulher perguntou, depois de beijá-lo no rosto.
- Assim, assim.
- O que é isso, homem?
- Um experimento.
- Esse ‘experimento’ tinha que ser feito na nossa sala?
- Não teve outro jeito.
A mulher não gostou da resposta, mas achou por bem não contrariar o homem. A aposentadoria compulsória deixara-o ranzinza.
- Jantou?
- Estou sem fome.
- Eu vou tomar banho.
- Hum, hum.
Meia-hora depois, de volta à sala, a mulher deu com o marido sentado em posição de iogue, dentro de uma grande gaiola.
- Que espécie de experimento é esse?
Cordeiro abriu os olhos:
- Ando lendo Kafka.
- E?
- E daí que tenho fome, Vera, muita fome.
- Mas acabei de te perguntar se queria jantar!
O homem olhou-a com pena.
- É outra a minha fome, mulher. Lutei como um leão, você sabe, para pôr os políticos corruptos de nossa cidade atrás das grades. Muitas vezes fui voto vencido. Suportei os ataques a mim endereçados.
- Mas homem...
- As críticas, Vera, não me atingiram, que sei do meu dever em não contribuir para que o homem simples cultive a descrença no direito praticado em nosso país. O que dói, Vera, é antever o que virá. O que será de nós, Vera? Prometi dizer umas verdades em meu último pronunciamento na Casa da Justiça e o fiz, mas sei que cairei no esquecimento. Nos primeiros dias desta maldita aposentadoria, pensei em pôr fim em minha vida, para não ter que ver o que se  nos avizinha. Mas então, Kafka veio em meu socorro. Por agora, faço-me pássaro às avessas e me engaiolo.
A mulher o encrava boquiaberta.
O homem deu uma pausa teatral:
- Está vendo aquela câmera?
 E apontou para uma filmadora sobre a mesinha de centro
– Filmei tudo - nesse momento, ele deu um meio sorriso, o sorriso da Monalisa – pra postar no youtube.



A última trincheira da cidadania

Publicarei, nos próximos dias, algumas das crônicas do meu livro " A última trincheira da cidadania ( são 21). Eu as escrevi no ano passado e desejei comercializá-lo ( contratar editora, fazer divulgação, vendê-lo). Mudei meu projeto. Com ele arrecadarei doações para custear a vacinação contra leptospirose, que tem matado cachorros e cadelas de crianças do meu bairro. Como as famílias têm pouco dinheiro, não levam os bichinhos ao veterinário para vacinar, nem quando são filhotes, nem quando são adultos. Presenciei o sofrimento de uma cadela adorável, de apenas seis anos e isso me deixou mal. No meu bairro há terrenos baldios, entulho nas esquinas e córregos, que resultam na proliferação de ratos. Farei parcerias com os veterinários da região, em busca de valores mais acessíveis (cobram, pela vacinação: 50 reis para gato e 70 reais para cachorros). Se quiser empreender essa cruzada comigo, escreva-me ( admsantos21@gmail.com).