crônica: Palimpsesto
livro: A última trincheira da cidadania
por Eliana
O
pai percorreu todos os cômodos da casa à procura da filha. Tinha ouvido seus
gritos do conforto do sofá e foi com um suspiro que deixou o copo de cerveja
sobre o tampo da mesinha de centro. Desligou a televisão para ouvir melhor o choro
da menina. Andou pelos quartos, olhou dentro dos armários da cozinha, foi
encontrá-la embaixo do tanque, na lavanderia. Ela agora chorava baixinho. Ao se
abaixar, o homem sentiu estalar os ossos. Decididamente, ele tinha que voltar a
se exercitar, quem sabe umas caminhadas. Pôs na voz toda a paciência de que foi
capaz.
- Já passou, já passou.
A
menina continuou a fungar, as lágrimas escorriam pelas bochechas avermelhadas. Pena ele não saber falar a linguagem das
crianças. A mãe é que tinha um jeitinho todo especial com ela. Fez outra
tentativa:
-
Vem, filha, vem com o pai.
O
homem estendeu a mão branca e gorda. A menina olhou-a entre lágrimas, indecisa.
-
Vem, meu bebê, tem sorvete de chocolate na geladeira.
A
menina limpou o nariz com as costas da mão direita, em seguida, pegou a mão do
pai. Ele teve ímpetos de recolher a sua, mas aguentou firme.
-
O Paulinho escreveu no meu desenho.
-
Foi, meu bem ?
Paulinho,
o irmão do meio da menina, era o orgulho do pai, já que o mais velho não
prestara pra nada, o desajustado. Não comia carne, não votava, jogara todos os
documentos fora “pra o governo não me rastrear”. Vivia numa comunidade de
desajustados, que a mãe insistia em diz que eram alternativos. Já o Paulinho
desde cedo mostrara a que viera. Desde pequeno, dedicado aos livros e aos
estudos. Jogava basquete, nadava, tocava violão, cursava o quarto ano de
engenharia elétrica numa respeitada instituição pública. Sorridente, sempre de
bem com a vida. A mãe vivia imersa num misto de preocupação e de ciúme, porque
ele vivia rodeado de meninas.
-
O Paulinho escreveu no seu desenho, foi meu bem?
-
Foi, pai.
Aquela
coisinha ali, com não mais que três anos, que ele nem esperava e que veio
acompanhada de certa apreensão. Ter de começar tudo de novo, só que agora uma
menina. Ele e a esposa, já não mais tão jovens, a piada da família. Cesariana,
fraldas, vacinas, comer na mesa, as primeiras palavras – quais foram mesmo?
Ensinar a usar o peniquinho, depois a privada, o primeiro dia na escolinha, as
primeiras rebeldias...
-
Deixa ver, amorzinho.
Ela
segurava contra o peito uma folha toda enrugada. Ele puxou devagarinho, com
cuidado para não rasgar.
-
Que lindo! - o pai disse, tentando divisar nos traços o que era obra da menina,
o que era mancada do garoto. Viu o que parecia um prédio, com vários andares e
cores, uma mesa com vaso e flores, uma mulher sorridente – a mãe – um gato,
mais vasos de flores, uma árvore. Por sobre o desenho um traço azul forte de
esferográfica: um telefone, o nome de uma garota e um mapa, desses que a gente
faz às pressas, quando precisa ir a um lugar a que nunca foi antes.
-
Puxa, que chato!
Os
traços da menina mudaram de imediato. A fragilidade e a inocência, vincadas das
lágrimas, deu lugar a uma outra menina de olhos muito abertos e vivos. Ela
cruzou os braços e o encarou com raiva. Ele teve medo.
-
Você não vai fazer nada?
-
Vou sim, você vai ver a bronca que ele vai levar.
-
Vai por ele de castigo?
-
Claro, claro – o pai afirmou, sem saber como faria isso se o rapaz já nos seus
23 anos - agora vem, dá um abraço no pai.
A
menina, meio que a contragosto aceitou o colo do pai. Os dois seguiram para a
cozinha. O homem abria a porta da geladeira quando ouviu gritos no andar de
cima:
-
Pestinha! Pestinha!
Era
o Paulinho, berrando no quarto.
O
pai olhou ao redor. Cadê a menina?
O
pai subiu as escadas em tempo recorde. Da porta, escandalizou-se com a cena: o
filho ajoelhado no quarto, desconsolado. O chão coberto com seus gibis raros. Uns
riscados, outros rasgados. A menina sentada em meio às folhas.
O
pai pegou a menina do chão, pegou também um dos gibis. As páginas estavam
cobertas das letras do nome dela, escritos com giz de cera. Assustado, pai procurou os olhos da filha.
Ela
sorria.